5.19.2011

A produção literária de São Paulo.

Um momento essencial da nossa história, foi quando o cristianismo se tornou um momento de produção literária. Por um lado temos a conservação da memória, por outro a expansão. Mas a escrita é um momento de auto-consciência, pois ao escrever, a Igreja escreve-se. A Igreja ao escrever os evangelhos está a escrever-se, está a contar-se. Quando Paulo escreve as cartas, ele está a resumir o acontecimento cristão, mas ao mesmo tempo a contar-se. Nós temos acesso a Jesus através da fé da Igreja. A produção literária é um acesso a Jesus.
Este momento de produção literária é muito importante também como momento de autocompreensão da Igreja. As cartas de Paulo fazem sentir Paulo na primeira pessoa. Este Paulo viajante é um Paulo cada vez mais seguro e cada vez mais certeiro naquilo que diz e na forma como diz. No texto bíblico, não podemos isolar a forma do fundo, de modo que é aceitando a palavra que podemos chegar à verdade que ela significa. Poucos acreditam no poder da palavra, e Paulo é uma dessas pessoas que acredita.
Paulo, na carta aos coríntios, lembra que vem falar de uma sabedoria que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Para que a Palavra se torne experiência de espírito, ela tem de ser uma palavra dominada, pensada, de modo a ir certeiro ao pensamento do leitor. Que procedimentos Paulo utiliza para tirar de um modo tão evidente a eficácia das palavras?
Para escrever uma carta precisamos de papel, caneta (cálamo) e tinta. A palavra papel vem de papiro. E o papiro foi a forma mais comum que Paulo poderia ter usado nas suas cartas. Temos diversas descrições da produção de papiro. Em 200 d.C. descobriu-se um papiro chamado Papiro46, dobradas ao meio, quase como as nossas folhas A5. Este papiro contém todas as cartas de Paulo, à excepção das cartas a Tito e a Timóteo. Depois temos ainda o pergaminho.

A maior parte dos escritores da antiguidade tinham um secretário. Então surge-nos a questão: Paulo tinha um secretário ou o próprio Paulo é que escrevia as mesmas cartas? Na carta aos Romanos (Rm 16, 22), foi Paulo que escreveu ou Tércio? Este Tércio era um secretário de Paulo. Mas era um secretário amigo, pois senão não fazia a sua intromissão na carta. Ora, se em Rm 16, 22 nós temos de forma implícita, noutras cartas temos de forma explícita: Gl 6, 11 temos um sinal de que Paulo assinava as cartas, tal como em 1 Cor 16, 21.
Qual era o papel do secretário? É um redactor que toma por escrito o que alguém está a ditar. Quintiliano fala da dificuldade do secretário em escrever tudo o que se dita. Logo, havia um desenho mental daquilo que se pretendia escrever, e em Paulo há uma espécie de premeditação daquilo que ele vai dizer. Há um certo toldo das cartas de Paulo que tem a ver com o modo como elas foram redigidas. O secretário era um redactor, mas tinha outras actividades:
- A actividade de copista. E isto é importante para a elaboração do cânone.
- Havia também o trabalho de recolha de elementos. Há material de vária ordem que não pertencem a Paulo e que é utilizado nas suas cartas: 1Cor 11, 23-25, o que acontece a propósito da eucaristia, acontece a propósito dos hinos litúrgicos (Fl 2, 6-11; Ef 5, 14). Mas encontramos também fórmulas do credo: 1Cor 15, 3-5, isto é um credo da Igreja primitiva e não um credo tipicamente Paulino, tal como em Rm 1, 3-4. Paulo nas cartas aos Coríntios fala em cinco cartas, portanto pressupõem-se outras três. Então a produção de Paulo era maior que a escrita que temos no cânone.
- O secretário podia ser um editor: que corrige o texto, recomenda, etc. E muitas vezes é o secretário que tinha a palavra de edição. Às vezes surgem repetições nas cartas, será que Paulo tinha reparado que já tinha falado naquilo?
- A actividade de autor. O secretário poderia ser o autor das cartas, escrevendo em nome dele, como acontecia com Cícero, quando pedia ao secretario que escrevesse cartas em nome do autor.

Outra questão que se põe acerca das cartas de Paulo e já não tem a ver com o secretario, é a questão da co-autoria, pois há cartas que são colectivas. Lembramos a 1 Ts: será que a carta é de Paulo? Então qual é o papel dos outros (Silvano e Timóteo) que vem anunciados na carta? Porque é que Paulo quis ligar outras personagens às suas cartas? Por benevolência ou porque essas pessoas tem um papel importante na carta?
Nós não temos dúvidas que por detrás das cartas há um cérebro. Portanto, Paulo é o seu autor, pois ele é a figura central, mas ao mesmo tempo procura-se valorizar a presença destas personagens. Ou seja, não é apenas por favor que eles aparecem e o facto de eles aparecerem obriga a colocar um papel importante nestas personagens. Não podemos retirar importância aos co-autores, seja qual for o papel que eles têm. Será que Paulo não terá ouvido a opinião destes co-autores quando redigiu as cartas?

Por fim, resta-nos perguntar: quem envia as cartas? O imperador Augusto criou um serviço de estafetas e eles paravam em cada cidade num positus. É possível que Paulo tenha utilizado um correio privado, e possivelmente as suas cartas eram enviadas por outros cristãos. Havia então uma rede humana e cristã que fazia circular as cartas de Paulo. Isto mostra como o cristianismo era um exercício de confiança, de vontade.

26 de Abril de 2011

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