6.05.2011

Filipenses: Uma carta ou uma colecção de cartas?

Esta questão brota naturalmente de uma leitura da carta, quando nos apercebemos da ruptura do discurso em dois pontos: 3,2 e 4,10.

É negável o tom gozoso e cordial em Fl 1 e seguintes. Encontramos o relacionamento afectuoso de Paulo para com a comunidade, onde Paulo não vê a ameaça de qualquer perigo exterior (1,27-30), nem de pequenas quezílias pessoais entre os membros da comunidade. E, no entanto, chegados ao fragmento 3,2-21 este ambiente sereno muda completamente. Agora a comunidade deve agarrar-se à teologia e ao exemplo de Paulo perante a presença de uns “κακοὺς ἐργάτας” (Fl 3,2), que resultam em perigos para ela (cf. Fl 3,15.17). Cessam os elogios, e o trato cordial e amável é substituído por um tom frio e severo. Se em Fl 3,1 Paulo fala da alegria, parecendo que se está a despedir, em Fl 3,2 Paulo, como que picado por uma “abelha”, começa com outro tom. Ele fala da circunscrição como mutilação e usa uma “violência verbal”. Outro contraste surge quando surpreendentemente encontramos a expressão “alegrai-vos no Senhor” (Fl 3,1). Outra observação resulta de somente Fl 1 e seguintes falar do cativeiro e do perito de morte do apóstolo, e em Fl 3 não haver qualquer referência às circunstâncias concretas da vida do apóstolo.

Quando Policarpo escreve uma carta aos filipenses, ele diz que Paulo escreveu para esta comunidade várias cartas. De facto, se saltarmos de 3,1 para 4,4 encontramos uma unidade muito grande. Por isto, surgem diferente e divergentes posições quanto à integridade da carta, havendo quem considere que esta resulta de uma colecção de duas cartas, ou de três cartas, ou ainda que se trata somente de uma carta.

Quanto a uma possível colecção de duas cartas reunidas nesta epístola encontramos algumas exegetas a defenderem esta posição. Friedrich subdivide: Carta A= 1,1 - 3,1a + 4,10-23; Carta B= 3,1b-4,9. Já Gnilka subdivide: Carta A = 1,1-3,1a + 4,2-7.10-23; Carta B = 3,1-4,1.8-9.

Encontramos ainda exegetas, como Bornakamm e Murphy O’Connor, que falam de três cartas compiladas numa só. Em ordem cronológica, a primeira estaria em 4,10-20 (Carta A), a segunda nos capítulos 1-2 e em 4,2-7.21-23 (Carta B) e a terceira carta no capítulo 3 (Carta C). Também na introdução da Bíblia de Jerusalém é-nos apresentada uma divisão ternária da carta, mas com ligeiras nuanças. Carta A = 4,10-20. Carta B = 1,1-3,1+4,2-9,21-23. Carta C = 3,2-4,1. A carta A procederia às outras duas, tendo sido enviada por ocasião da recepção do dom trazido por Epafrodito. A Carta C seria mais tardia, tratando da polémica contra os missionários judeu-cristãos. A Carta B compreenderia o sereno apelo à unidade, à perseverança.

Há ainda que diz que se trata de uma única epístola. Na base desta argumentação estaria a própria pessoa de Paulo. Pela prova de estilos, Paulo é um autor de contrastes e, pela prova dos manuscritos, nestes não encontramos duas unidades diferentes. Deste modo, poder-se-ia explicar este complexo passo, Fl 3,2-21, fazendo uma ligação entre o hino cristológico e a defesa que Paulo faz do seu ministério. Este hino cristológico é como que aplicado a Paulo, no esvaziamento que Paulo celebra na pessoa de Cristo. Este radical arrebatamento e abaixamento de Cristo, é o projecto de vida que Paulo propõe para os cristãos, projecto este onde cruz e glória se cruzam.


(Como fontes bibliográficas foram utilizados os apontamentos da unidade curricular de Escritos paulinos; REYNIER, Chantal - Pour lire Saint Paul. Cerf, Paris, 2008, p.355-357; BECKER, Jürgen - Pablo: el apostol de los paganos. Sigueme, Salamanca, 1996, p.366-374; Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 2003, p.1961).

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